quarta-feira, 27 de abril de 2011

Janelas

— Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,

Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d'um Saarah movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sono misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!
(Charles Baudelaire)



Passos rápidos nos três degraus da calçada frontal, abriu a porta. Tudo exatamente como deixara. Uma estabilidade em meio a bagunça, um cheiro de mofo contrastando com as rosas que acabara de receber, uma imperfeição que causava ânimo somente a ela. A mesma sala, o mesmo quarto, a mesma cama. As manchas das paredes estavam minuciosamente planejadas, os três livros que estava lendo ao mesmo tempo, os pedaços de LP's pelo chão, tudo se encaixando de uma forma meticulosa. Roupas, lençóis, sapatos esparramados por todos os lados, a cabeça; do mesmo jeito que a casa- revirada- mas uma agradável sensação de que tudo estava intacto e a janela que continuava aberta. O som do piano tocado pelo vizinho que ela nunca vira. Já perdera as contas das vezes que passara pela frente de sua casa na intenção de ver o seu rosto, nada seria melhor do que a certeza de que ela não o teria inventado, de que tudo não seria apenas um delírio de alguém que chega cansado e ouve melodias enquanto mexe, vagarosamente a cabeça, mas não canta, porque vive de suspiros. E ela o viu. Ele também. Mas nada falou, porque não se fala com estranhos e o que o vizinho pensaria?

Nenhum resquício de diálogo, engraçado como se conheciam muito bem. Ela mudara o sofá de lugar, ele não poderia se incomodar. E ela pedia: "Toque mais uma!" e se riam demais. Só se ouviam as notas, apenas.

Mas as notas pararam, o tempo passou, ela fechara a janela, ele, finalmente, ouvira sua voz, cantando "Esperança cansa, cansa de esperar." E ele tentava acompanhar, sussurrando baixinho "Esperança... cansa,... cansa de... esperar." Mas a memória lhe faltava, se perdia pelas manchas das paredes. Ela parara de cantar, pensava em incômodo, e o que o vizinho pensaria? Comprou mais rosas, o cheiro de môfo poderia incomodá-lo, a janela estava fechada. E ele a procurava todos os dias, na fumaça do café que escapara pelas frestas da janela, nas rachaduras dos vitrais. Em dias de muito sol, ela abria a janela, até que deixou-as assim pra sempre. Mas nunca estava ali. Jamais falaria com ele, jamais.

Ela morreu numa tarde de outono. Fria, inerte.
Ele, o vizinho da janela sempre aberta, virou-se para o piano. "Se você tiver que escolher entre você e o seu amor, você escolhe quem, você escolhe quem?". Continuava, era bonito o que cantava: "Mas eu tenho ainda um grande amor pra te dar, quero saber se você aceita ele como for."

Cantava para conservar a dor. A vida tinha gosto de mofo.




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