quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Das coisas não ditas




Não deve ser muito longe o pôr-do-sol.
Não deve ser muito longe encontrá-lo.
E eu ando assim, como quem procura rastros daquilo que é tão longe, como quem procura pistas. Andar em labirintos à procura de faunos. Fantasiar entre um passo de dança e outro. Ou se vai até o fim ou se vai.
E indo embora, descobre-se que há sempre muito por dizer. Por beco, praças e bosques, as setas apontam as promessas e juras feitas e quase inacabadas. No fim, você andou em círculos, você procurou faunos, se perdeu.
Versos bem articulados nem sempre suavizam a dor, quase sempre se perdem em excessos de um amor estranho. Meu bem, a alma deve ser suave também. Toque uma flauta, suba de oitava, ande na ponta dos pés ou finja saber qualquer coisa, mas seja suave. Suave e doce também. Isso de fechar os olhos e imaginar-se em qualquer lugar bem longe daqui, isso de distinguir emoções, de encontrá-las, isso de encantar cada milímetro de um ser.
Mas essa coisa clichê do amor é tão pobre e medíocre. Amor deve ser essa coisa bem ácida que a gente bebe logo antes de ingerir doce, algo que estimule as glândulas palatais ou qualquer coisa parecida, bem medida e previsivelmente controlável. Doce é essa coisa de fechar os olhos e imaginar-se bem longe daqui, isso de distinguir emoções e encontrá-las, isso de encantar cada milímetro de um ser, amor não. Eu não sei quando foi o momento que cometi a insanidade de abandonar o pára-quedas, mas não há mais espaço para  mergulhar de vez e perceber a altura que se está. 
No fim, nunca entenderás que sempre me despeço e ensaio mergulhar, mas não, coração, você não me desafia mais.



segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Esperas

Esse texto foi elaborado para a Oficina de Criação Literária da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Nem preciso dizer: eu-lírico mode on.





Você sempre esperará algo de alguém. É inevitável. De uma forma ou de outra, você nutrirá expectativas com relação às pessoas. Boas ou más, você as nutre. Você confia nisso e de uma forma, sabe-se Deus como, você acredita que suas expectativas serão supridas. Pior que isso: você gosta de conviver com a ideia de que, um dia, elas serão superadas. Então você tenta elaborar mil planos para ser supreendido, de como isso se daria. É natural, você diz. Você diz isso e espera.

Você espera um "bom dia" ao acordar. Você espera que notem suas olheiras no dia seguinte, que percebam que a sua noite não foi das melhores, que te perguntem porquê você chorou tanto ontem à noite, de quem você sente falta. Você espera que o olhar seja recíproco, que sintam falta da sua presença, que perguntem como foi o seu dia, que a caixa do correio esteja cheia, que o telefone toque. Você espera que todos imaginem o quanto você está bem e feliz neste exato momento, que cogitem sobre a sua felicidade e do quanto a sua ausência incomoda, suas histórias, seu jeito. Você espera que sintam saudades.

A campainha. Foi no apartamento ao lado. Você finge não se importar. Já são três horas da manhã, você decide preparar mais uma garrafa de café. Dormir? Hoje não. Há uma grande sala te esperando. A sala está lotada: você e você. Entre um movimento e outro, você espera que alguém adentre à sala. Ninguém. Nesse momento, talvez, você esboce um sorriso. É melhor assim. Repete isso enquanto se olha no vitral da janela. Sua vida tranformara-se numa grande sala de espera. Afinal, pra quê esperar? Num estalo, percebe-se.

- Não preciso esperar- murmura. Principalmente, quando não há ninguém fazendo o mesmo por mim. A vida é uma questão de conveniência. Alguém pode te ligar hoje, amanhã não, as pessoas fingem, é tão mais cômodo, tão fácil. Ninguém está interessado se você teve pesadelos ou sonhos na noite passada, ninguém se importa com o fato de você estar cansado hoje ou não. Tão mais cômodo ser assim, tão mais cômodo fingir.

Repetia isso, queria se sentir melhor.
- Você pede licença porque quer passar, diz "obrigado" para não romper protocolos, tenta olhar nos olhos na esperança de mostrar uma verdade. Você é especial até o dia que isso convir a alguém. A vida é assim, as pessoas são assim e todos sorriem uns para os outros, porque eu só dou o que eu recebo, isso é lógico, óbvio. Enquanto isso todos seguem o script, e encenam a peça teatral. Uma fantasia é bem mais interessante do que um fato real. Nu, cru, como ele é.


Neste momento, talvez, você esboce um sorriso. Sou feliz demais. Você agora está do outro lado da cidade, tomando um café com a velha e amarga companheira de longa data, sua cara solidão; divagando sobre todas essas coisas enquanto se entorpece com mais uma xícara de cafeína. Daí você conversa, entre um gole e outro, sobre o quanto a sua vida é boa, o quanto ela está ótima agora, melhor impossível, sobre o quanto as pessoas são desnecessárias na sua vida.

O telefone tocou. Café demais faz a gente delirar.







sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Hoje

Eu não sei bem o que dizer em momentos assim... Fico meio sem jeito, não sei... Não é vergonha, é que sempre acho que você me lê, e realmente me lê, então qualquer esforço que eu fizer em te mostrar algo novo será vão, previsível, corriqueiro.
Mas hoje eu só queria dizer que é bom me dar conta que, pelo menos, nosso amor (o nosso) não mudou, a rotina não o pegou. Hoje eu queria te dizer, assim, que os seus olhos continuam os mesmos, pelo menos pra mim. Seu abraço, seu cheiro, seu colo.
Eu sempre tenho muito pra te falar, eu falo demais, mas hoje eu acho que não serei tão extensa quanto de costume, não por falta de assunto.
Hoje eu queria te contar sobre como estão sendo os meus dias desde que te conheci. Te falar como o café se torna amargo com tua ausência. Hoje eu queria te lembrar do nosso primeiro encontro, do dia em que segurou minha mão pela primeira vez, e do quanto eu fui arrogante, autossuficiente e pedante ao início de tudo. Hoje eu só queria relembrar o modo como você me conquistou.
Te dizer que meu rosto encaixa perfeitamente no seu ombro, e que suas mãos são as únicas que não ressecam meus cabelos. Que esse tecido da sua roupa seca facilmente as minhas lágrimas de uma forma incrível.
Hoje eu queria te dizer que o coração dói de vez em quando, mas que dá pra levar, que o orgulho ainda tenta me pregar peça, e que as esperas ficaram cada vez mais confortáveis.
Hoje eu descobri que não há nada melhor do que sentir a sua mão no meu rosto. E que minhas cicatrizes são feias demais, mas que eu perdi a vergonha de te mostrá-las.
Hoje, eu não imagino a minha vida sem você.
Hoje eu quero te dizer que "te amo", e que espero o momento em que poderei te dizer tudo isso pessoalmente.





Lá... Onde as ruas são de ouro.

sábado, 9 de julho de 2011

Voar




Cantar a felicidade sobre as nuvens, tocar no sol e não se queimar, subir em árvores sem se ralar, escalar montanhas em questão de segundos. Ver onde o arco-íris nasce e onde ele termina, descobrir pra onde os pássaros vão ao final de mais um dia, encontrar os anjos e perceber que se parecem comigo. Brincar com o vento, sentir ele me desequilibrar, me jogar de uma lado para o outro, na certeza de que ele nunca irá me derrubar. Porque há quem nunca nasceu para isso, mas há aqueles que pertencem aos céus.
Voar, para mim, nunca foi tarefa fácil. Exige empenho, disciplina e uma enorme vontade de ir mais além. Não nasci com nenhum destes.
Logo de início, a primeira coisa a se ter para aprender a voar é adquirir asas. Algumas pessoas já nascem com elas e possuem uma facilidade nata de chegarem às alturas. Outras, as adquirem quase que despretenciosamente, nunca as quiseram, ou, nunca demonstraram querê-las, elas nasceram naturalmente, como as unhas que crescem na ponta dos dedos sem vontade própria, ou como cabelo que aumenta um centímetro de semana em semana. Normalmente, pessoas assim não usam suas asas, é como ter dois carros e só andar a pé. Mas existem aqueles que necessitam de asas porque a vida de terrestre é massacrante demais para estes, aqui eu me encaixo. É mais uma questão de sobrevivência do que de sonho, ou desejo. Este grupo, simplesmente, necessita das asas, e estas lhes nascem da forma mais dolorosa possível. Basta observar as cicatrizes nos ombros. Não são bonitas. 
Então, inicia-se assim um longo processo de adaptação. Tive dificuldades em suportar o peso das asas. Dormir era muito desconfortável e, à medida que elas cresciam, fui privada de entrar em alguns lugares. Neste período, é comum os que não têm asas sentir medo dos que as têm. O tamanho das asas costuma afastar aquilo que ocupa o espaço delas.
Quanto à elegância, foi me imposta. Quem tem asas, obrigatoriamente, deve andar com a coluna ereta, o pescoço firme, o olhar fixo e perpendicular ao chão, tudo isso de forma leve, sem parecer mecânico. Qualquer descuido resultaria em dores mais tarde.
Entretanto, o ponto mais difícil é se manter no ar. No alto. Aqui, a dificuldade de respirar é muito maior, o céu nem sempre está azul límpido, o sol às vezes não brilha, mas descer já não me cabe mais.
Eu tenho asas, aproveitarei os céus. Aqui eu canto, desafinado, mas canto. Me pinto com o brilho de alguma estrela, choro sem me importar porque o vento secará as lágrimas. Adormeço numa nuvem qualquer e acordo sobre o mar. 

É que já estou alto demais e tudo lá embaixo ficou muito pequeno para mim. 



quarta-feira, 22 de junho de 2011

É você

Não é pra sempre, você sabe que não, mas eu te preveni.
Só que você se abandonou, se deixou acostumar, ser levada, eu te disse pra não parar de remar, eu te pedi pra não desistir de lutar, por mim, por nós. Eu preferi me distanciar, mas pode haver algo de bom na distância, eu não descobri ainda, mas deve haver, tem que haver. Saudade nunca foi um costume meu, sempre te tive por perto, agora não. E nessa brincadeira de ver quem é o mais orgulhoso, parece que você se acostumou.
Eu sonho com você todos os dias, eu me desfiz dos seus retratos e souvenirs, mas eu decorei cada frase que você costumava usar. Eu solto uma delas, vez ou outra. Eu mato a saudade assim, antes que ela me mate, porque quando penso em amor é em você que eu estou pensando.
Eu espero sempre algo de você. Eu espero você me olhar, me notar. Eu crio expectativas. Eu me arrumo mais porque acho que hoje você vai me ver diferente. Eu espero todos os dias você se aproximar e me dizer que a brincadeira acabou. Mas você não veio, ou está atrasada, então eu decidi te esperar.
Eu te encontrei ontem, como você está linda. Você é linda. É orgulhosa, mas não sabe mentir com os olhos. Sempre te disse isso: a mim, você não engana. E foi tão bom te ver, assim, de perto, pertinho. Eu acho que você não olhou nos meus olhos, às vezes eu penso que você tem medo deles, mas eu te olhei bem, e você anda triste.
Te observo todos os dias e você nem sabe. Você chora sempre, mas não me vê. Eu sinto vontade de me aproximar e te abraçar, enquanto você chora no meu ombro e soluça copiosamente, como fazia antes. Eu sinto vontade, mas não vou.  Você entende tão bem de palavras, eu usaria algumas e te machucaria de novo, e você me desprezaria com sua frieza e seus ares de quem-não-se-importa.
Eu tento disfarçar, mostrar que estou bem, olho pra você de relance, mas volto-me para o meu grupo e dou risada. Eu choro por dentro. Sou bom em disfarces.
Quando te encontrei ontem, senti vontade de te puxar pelo braço e dizer tudo que eu tenho medo de dizer. Eu quis te dizer que foi tudo pra você, que é você, mas você passou por mim sei nem ao menos me olhar. Você estava tão longe. Então eu uso de mil e umas estratégias pra ficar perto de você, mas você não me nota, e eu começo a sentir vergonha, chego a pensar que você está olhando pra mim, desvio os olhos rapidamente. Eu guardo comigo essa ilusão, de que você me olhou sem eu perceber.
Eu já te disse que você não precisa trazer nada, já te avisei mil vezes que quem se baseia em reciprocidade nunca entendeu de amor, eu continuo esperando.
Eu sei que parece tudo clichê, até tentei fazer uma música, eu iria usar uma metáfora sobre "escritas à base de sangue" mas não funcionou, então eu preferi te escrever porque eu não teria o que dizer se tentasse fazer isso pessoalmente.


Chorando, ela leu cada palavra escrita e, ainda soluçando, escreveu um bilhete.


E os pássaros, as praças, as pessoas, as canetas e todos os bilhetes do mundo inteiro repetiam o que eles nunca cansaram de dizer um pro outro:

"Foi com você que eu sonhei a minha vida inteira."

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Inverno


Esse texto não é de cunho auto-biográfico, trata-se apenas de um texto escrito para um site do qual sou participante (Jardim de Clio), não tem nada  a ver com a minha vida e nem é em homenagem ao dia dos namorados, portanto, por favor, não confundam meus textos com minha vida pessoal, nem o meu eu-lírico com as minhas histórias de vida, as duas coisas estão bem separadas, além do mais, nem seria inteligente da minha parte usar um blog como diário, até porque, literatura não é biografia.

Um vento muito frio no rosto, uma xícara de chá quente para aquecer a alma, a mão gelada tentando se aquecer sozinha, a fumaça do chá que inebria o ser. Uma coberta quente para amenizar a dor, um sopro na fumaça da xícara, para não perder o costume, um livro velho pra relembrar o amor. Porque depois de um tempo, a alma cansa, o sorriso bobo se esvai, as fantasias se perdem, o tempo massacra as esperanças, o inverno agora é aqui dentro.
Quando o tempo não passa lá fora, se morre um pouquinho de cada vez por dentro. Os olhos não brilham, o sangue não pulsa, seu corpo se fecha e é incapaz de externar qualquer sensação, qualquer emoção, qualquer coisa que te provoque qualquer outra coisa. Seu coração foi esquecido numa esquina qualquer. De uma rua qualquer. Procura-se.
Quando se perde o coração, a mente anda meio errante e se torna inconstante feito água, tentando se adaptar a qualquer situação, se moldando a qualquer condição. Racionais são pessoas mentirosas que não perderam o coração, muito pelo contrário, guardaram ele na última gaveta da cômoda, atrás de todos aqueles objetos e cartas e lembranças, alimentando-o a pão e água, visitando-o todos os dias, pedindo conselhos pra uma mente boba, bobinha. Mentirosos.
Ajeite-se no sofá, fique mais confortável, a temperatura caíu mais um grau. Agora vai congelar.
Seguiu para o quarto, levou o chá, a coberta e o livro junto. Um bichinho de pelúcia lhe fazia companhia, manter a ideia de solidão a assustara mais ainda. Conservar a ilusão da companhia era sempre mais agradável. Com certeza. Com certeza.
Não precisava ser assim, nem precisava eternizar, podia ser tudo, menos o único. Poderia ser mentira, não precisava ser pra sempre, poderia ser qualquer coisa, menos o primeiro.
Perdeu o coração. Acharam e o jogaram no lixo.
Cubra-se direito. Agora nevou.



quinta-feira, 26 de maio de 2011

Conselhos aos poetas que se dizem filhos de Camões

A você. Que senta e diz que é poeta.
Que senta e se aventura numa luta com rimas que não fazem nenhum sentido. Que cria neologismos para se dizer modernista ou parecer a segunda versão de Caetano. Que fala de um amor tão piegas quanto o que está estampado nas letras do Restart, do Justin Bieber, e de tantos outros clichês musicais.
A você, que não tem mistério, que diz apenas por dizer e que abusa das reticências. Que não tem entrelinha nenhuma e que é óbvio descaradamente. Que olha pra árvore e decide escrever sobre ela, que abre o dicionário e usa a palavra mais incomum que encontrar no seu texto. Você, leia-me, leia-me bem: você não é poeta. E não se ache o gênio do lirismo só porque passou a vida toda em volta de frases e trechos de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu porque não, você, definitivamente, não é.
Poesia não é expôr sua vida de forma escancarada nuns versinhos com rimas prontas de uma  maneira que todos TE reconheçam ali. Poesia é mais que isso. Não é um atirar de palavras bem arranjadas que se faz pra conquistar alguém, nem um punhado mal arranjado de letras que machucam. Você quer ser poeta? Então não atire palavras ao léu, pousando de intelectual, apenas sinta-as. Também não use a poesia como resposta ou indireta a ninguém, ela não tem culpa de suas desventuras, sobretudo, as ortográficas. Você quer ser poeta? Faça com que os outros SE reconheçam no que você escreve, mas não transforme a sua poesia num diário, nem a encha de mesmices, apenas não escreva pra você. Escreva para quem tem alegrias como as suas, tristezas como as suas, que sofre como você sofre, que ama como você ama. Escreva para quem você nunca viu, pra quem te ignora; escreva, até, para quem não escreve. Escreva para e não sobre. Poeta que é poeta, sangra; o que é absolutamente inaceitável é que, para se obter o sangue, você precise forjar a ferida. Isso não é ser poeta. É ser burro.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Janelas

— Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,

Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d'um Saarah movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sono misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!
(Charles Baudelaire)



Passos rápidos nos três degraus da calçada frontal, abriu a porta. Tudo exatamente como deixara. Uma estabilidade em meio a bagunça, um cheiro de mofo contrastando com as rosas que acabara de receber, uma imperfeição que causava ânimo somente a ela. A mesma sala, o mesmo quarto, a mesma cama. As manchas das paredes estavam minuciosamente planejadas, os três livros que estava lendo ao mesmo tempo, os pedaços de LP's pelo chão, tudo se encaixando de uma forma meticulosa. Roupas, lençóis, sapatos esparramados por todos os lados, a cabeça; do mesmo jeito que a casa- revirada- mas uma agradável sensação de que tudo estava intacto e a janela que continuava aberta. O som do piano tocado pelo vizinho que ela nunca vira. Já perdera as contas das vezes que passara pela frente de sua casa na intenção de ver o seu rosto, nada seria melhor do que a certeza de que ela não o teria inventado, de que tudo não seria apenas um delírio de alguém que chega cansado e ouve melodias enquanto mexe, vagarosamente a cabeça, mas não canta, porque vive de suspiros. E ela o viu. Ele também. Mas nada falou, porque não se fala com estranhos e o que o vizinho pensaria?

Nenhum resquício de diálogo, engraçado como se conheciam muito bem. Ela mudara o sofá de lugar, ele não poderia se incomodar. E ela pedia: "Toque mais uma!" e se riam demais. Só se ouviam as notas, apenas.

Mas as notas pararam, o tempo passou, ela fechara a janela, ele, finalmente, ouvira sua voz, cantando "Esperança cansa, cansa de esperar." E ele tentava acompanhar, sussurrando baixinho "Esperança... cansa,... cansa de... esperar." Mas a memória lhe faltava, se perdia pelas manchas das paredes. Ela parara de cantar, pensava em incômodo, e o que o vizinho pensaria? Comprou mais rosas, o cheiro de môfo poderia incomodá-lo, a janela estava fechada. E ele a procurava todos os dias, na fumaça do café que escapara pelas frestas da janela, nas rachaduras dos vitrais. Em dias de muito sol, ela abria a janela, até que deixou-as assim pra sempre. Mas nunca estava ali. Jamais falaria com ele, jamais.

Ela morreu numa tarde de outono. Fria, inerte.
Ele, o vizinho da janela sempre aberta, virou-se para o piano. "Se você tiver que escolher entre você e o seu amor, você escolhe quem, você escolhe quem?". Continuava, era bonito o que cantava: "Mas eu tenho ainda um grande amor pra te dar, quero saber se você aceita ele como for."

Cantava para conservar a dor. A vida tinha gosto de mofo.




segunda-feira, 25 de abril de 2011

O enterro dos mortos

Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aléias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.
Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.
Frisch weht er Wind
Der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
Wo weilest du?
''Um ano faz agora que os primeiros jacintos me deste;
Chamavam-me a menina dos jacintos."
- Mas ao voltarmos, tarde, do Jardim dos Jacintos,
Teus braços cheios de jacintos e teus cabelos úmidos, não pude
Falar, e meus olhos se enevoaram, eu não sabia
Se vivo ou morto estava, e tudo ignorava
Perplexo ante o coração da luz, o silêncio.



Trecho de ''Terra Desolada'', publicado pela Editora Nova Fronteira em ''T.S. Eliot - Poesia''.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Fomos

Do lado de cá, eu
E tu, do lado de lá
Tu, avesso
Eu, sempre aqui.

Já não te vejo por toda parte
Não te encontro dobrando esquinas
É bem verdade que fazes falta
Não é saudade o nome disso.

Andas pomposo, fiquei sabendo
Demos três vivas aos que desamam!
Sentir sua falta não me incomoda
Ora, que bom, a ti nada falta.

Eu não o vi, enfim,
Não são teus olhos estes
Enfim, o fim, sim!
Deves brindar, festejes.

Porque nós éramos, fomos,
Tu já não és. Nem eu.
Sugiro, então, acostumar-te
Soes os cálices, mais um desamor teu.

***

Esse texto está horrível, assim como os últimos que postei. Acostumem-se, parece que isso será frequente. Já tive melhores momentos literários...