sexta-feira, 9 de julho de 2010

O dente




E você senta. Daquela forma típica: coluna posicionada errada, sempre tão largada. Eu vejo. Você olha o vidro. Manchado, arranhado. Do outro lado, telhados sujos, escuros. Sobre eles, folhas secas, restos de bolas de futebol, bandeirolas da última festa junina, vestígios da última chuva.



O dente que você jogara num daqueles telhados ainda estava ali. Os dentes ainda estavam ali.
Olha, eu nunca entendi direito o porquê de vocês jogar seus dentes de leite no telhado da vizinha. Nunca acreditei nessas coisas, mas gostava de ver o seu rosto ao jogar cada um deles, lembro-me bem do último. Seus pés no chão, a seriedade de sua face, o impulso tomado para obter mais força ao jogar. Tudo muito engraçado. Você excessivamente séria.
Muito estranha a seriedade que você tinha às vezes. Às vezes, não; quase sempre. Na verdade, eu sempre  achei você muito estranha. Suas manias, às vezes, tão esquisitas.
Estou me contradizendo, eu sei. Às vezes, uso "às vezes", às vezes "sempre", às vezes querem dizer a mesma coisa, quase sempre eu me confundo com os advérbios. Nunca me dei bem com temporalidades, restringem demais. Sempre uso esse argumento pra justificar minhas divergências com o Português, você sabe. Vez ou outra, eu acerto. Isso às vezes, ou sempre. Nunca se sabe. Posso sentar aqui?

- Pode.

Outro dia choveu muito. No quintal da minha casa tinha um dente, acho que caíu do telhado. Julguei ser seu, acho que um dos seus dentes foi jogado lá. Era bem alvo, curtinho, só pode ser seu. Nunca conheci ninguém com sorriso tão branco feito o seu. Acho que não. Sorrisos assim são uma raridade só, não acha?

- É.

Ou talvez não, talvez o branco seja só uma questão relativa. O branco que eu vejo nos seus dentes pode não ser o mesmo branco que você vê neles ao se olhar no espelho. Ou talvez o problema seja o espelho, ou talvez não haja problema nenhum, e o branco simplesmente não exista. Assim como o motivo que fazia você jogar dentes sobre os telhados — ele simplesmente não existe. Não. Não posso inviabilizar algo que tenha a ver com o que é subjetivo. Isso é pessoal demais, e não me atrevo. Acho até que estou dando importância demais a seus dentes, nunca acreditei nisso, você hoje também nem deve. Talvez seja tudo uma questão relativa mesmo. De perspectivas.
Eu me lembro quando eu tive que te explicar o significado dessa palavra  perspectivaVocê não entendeu muito bem (claro, eu nunca mantive grandes laços com o Português), e sempre que eu usava a palavra você sentava, daquela forma típica: coluna posicionada errada, sempre tão largada. O dedo indicador próximo a sobrancelha, levantando-a levemente, e por ali ficava horas, repetindo e repetindo: pers-pec-tiva, pers-pec-tiva. Manias. Até que eu te mostrei o dicionário:

s.f. Des. Representação, num plano, dos objetos como se apresentam à vista.

 
P. ext. Aspecto dos objetos vistos de longe; panorama.
Fig. Esperança ou crença numa coisa provável ou desejada, embora distante.

 
Recuo, distanciamento do observador em face do objeto.

 
Em perspectiva, com esperança de realização em futuro próximo.

 
Você gostou logo. Tinha esperança, outra palavra que você gostava muito.
Do vidro dessa janela nem dá pra ver a lua. O branco da lua, que nem o branco do seu dente, o branco que os meus olhos vêem. O vidro está sujo, o branco está mais pra amarelo. Seu dente está no meu bolso. Guardei aguardando reconhecimento seu. Não acredito nessas coisas, e você nem deve. Mas guardei porque é branco, o branco que os meus olhos vêem. Nunca conheci ninguém com sorriso tão branco feito o seu. Acho que não. Sorrisos assim são uma raridade só, não acha?

- É. Outro dia choveu muito. No quintal da minha casa tinha um dente, acho que caíu do telhado. Julguei ser seu, acho que um único dente seu foi jogado lá. Era grande e meio amarelado. Olha, nunca entendi direito, mas você dizia nunca acreditar nisso, e mentia pra si mesmo. Um dia me falaram que dentes duram a vida toda e não vão embora, eles apenas saem da nossa boca. Outro dia me falaram que promessas são quebráveis e saem da boca pra fora, nunca acreditei nessas coisas. Então eu prometi jogar um dente no telhado toda vez que eu prometer e cumprir. Não me lembro se consegui cumprir isso, chega um tempo em que os dentes passam a ser permanentes, muita coisa se vai junto com os dentes de leite. Acho que promessas devem ser que nem esse vidro: frágeis, e tornam-se amareladas à medida que nos esquecemos delas.

A verdade é que nunca  consegui arremessá-los, todos eles caiam quando eu tentava. Eu os guardei num potinho de conserva de doce de leite. Um dia o pote quebrou e eles se perderam pela casa, devem estar no lixo, mas ao menos no seu telhado sobrou um. E sabe o vidro da janela? É possível mantê-lo intacto e limpo. Quanto aos dentes, minha cara... Eles caem do telhado. Um dia caem...
O resultado é um pedaço de vidro antigo, porém intacto, caído bem no meio do seu quintal.

 

13 comentários:

Juliana Cordeiro disse...

que texto perfeiiiito Brunissima !
cm o curso fez vc virar uma eximia escritora !

Ameeei ....

Ada Lílian disse...

Bruninhaa, adorei o texto. Minha imaginação fluiu de uma forma incrível, gostei muito.
Ah, obrigada por me avisar no twitter, avise sempre ^^
Beeeijos.

Danielle disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Danielle disse...

Òtimo ! Deveria escrever um livro de crônicas!! rs ;)

beeijO

Tyci Olvieira disse...

Meu Deeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeus!
Vc está DEMAIS. Belo texto, muito bom o jogo e uso das palavras tão corretamente, divino. Queria saber escrever assim!
Parabéns!
Voltei por aqui, tava uma agonia minha vida.
Cade seu orkut? Seu msn? Nunca mais...
Beijos!

Otávio M. Silva disse...

Oi, muito bom texto. Belo Blog e o tema dele também é muito bom "Pedaços de lucidez", gostei.

dá uma passada no meu blog
http://otaviomsilva.blogspot.com/

Forte abraço

Midian disse...

Como sempre né Bruna?!Muito bom!!

Vanessa M. disse...

Melhor momento do texto: Acho que promessas devem ser que nem esse vidro: frágeis, e tornam-se amareladas à medida que nos esquecemos delas.

Adorei.


Viu? O Essência ficou de cara nova. Legal que gostou, Bruna. Beijão

Otávio M. Silva disse...

ola, sou eu de novo. E vc diz que não sabe fazer poesias? poesia não precisa ser feita pra existir, vc pod simplesmente SER uma posia e com essa sua alma linda tenho certeza que vc, por inteira É uma poesia. Bju.

Paula disse...

Nossa senhora....Muito bom! Isso sim foi interessante de ler.

Obrigada pela visita! ^^


:*

Layz Costa disse...

Bruna, você me eeenche de orgulho!
hahaha
Sabe, eu acredito que em cada momento que vivemos, em cada fase, temos a possibilidade de aperfeiçoar, apurar aquilo que Deus nos deu. E não tem como forçar, inventar, é natural: você tem o dom da escrita, tem intimidade e lida bem com as palavras.
Texto INCRÍVEL.

Beijos!
=*

BelaTeixeira disse...

Amando te ler!

Liliane disse...

Bruna!!!!
Gostei dessa sua analogia entre os dentes de leite e as promessas feitas.....Vou confessar um coisa só entre nós............gosto mto dos teus textos! kkkkkk
Deus a abençõe!!!!